O complexo negreiro do Valongo era formado por um cais de pedra, construído em 1811 no lugar da antiga ponte de madeira, onde os cativos desembarcavam; a rua do Valongo, atual Camerino, onde ficavam os principais depósitos de escravizados; o Cemitério dos Pretos Novos, na hoje rua Pedro Ernesto; e o Lazareto dos Escravos (1ª politica de saúde publica do Brasil), na antiga rua da Gamboa, onde os africanos enfermos recebiam os primeiros tratamentos de saúde após chegar ao Brasil.
O Valongo fez parte da politica pombalina, pelas mãos do Marques de Lavradio, vice-rei do Brasil entre 1769 e 1779, de organizar o espaço público e acabar com o mercado de escravos na Rua Direita. Com o complexo do Valongo se objetivava retirar das ruas mais nobres da cidade um cenário (negros desembarcados da África transitando pelas ruas nobres) que naquela época já era considerado incompatível com o estágio de desenvolvimento da colônia pela elite escravocrata. A área do Valongo a partir daí passou a ser uma área estigmatizada até o século XX. A 1ª campanha de vacinação do Brasil foi realizada no Valongo sendo os escravos a partir de 1804 vacinados contra a varíola (doença europeia) para diminuir a mortalidade e garantir os lucros dos traficantes.
Não é demais lembrar também que o estado joanino era sócio do comércio negreiro com a arrecadação de impostos pagos na costa da África (nas conquistas portuguesas) e com a tributação cobrada na chegada dos escravizados nas cidades brasileiras, imposto dos pretos novos, que ia para os cofres da Intendência Geral de Polícia da Corte do Rio de Janeiro, que financiou o Valongo.
No período de maior movimento, entre 1821 e 1831, mais de 250 mil africanos teriam chegado ao cais do Valongo, o que aponta que o cais de pedra do Valongo responde por metade do um milhão de escravos mandados para o Rio nos 50 anos entre 1779 e 1831. Lembrem-se que a independência foi proclamada em 1822 e a elite politica e agraria junto com a monarquia foram parceiras nesse negócio da venda de carne humana. Neste ano celebramos o bicentenário da Independência e histórias como o Valongo não podem ser esquecidas.
Durante o século XIX o Brasil era o grande receptador de escravos africanos do mundo atlântico e segundo o professor Carlos Eugênio Líbano Soares foi um acordo com a elite escravocrata/agraria que possibilitou a D. Pedro I assumir o comando, declarar a independência e manter a integridade do território nacional. Sem referida aliança não se sabe se teria sido possível ou não manter esse imenso território. Um possível desmembramento do Brasil em diferentes países poderia colocar em xeque o firme controle social desejado pelos proprietários de terras e escravocratas, uma vez que haviam projetos republicanos e de libertação dos escravos, sob influência das revoluções francesas e haitiana.
O Valongo, obra do estado monarquico, era símbolo de estabilidade, e uma mensagem dirigida aos comerciantes da mercadoria africana de que podiam contar com a boa vontade da dinastia Bragança. O ordenamento se refletiu na imediata intensificação dos negócios. O país podia estar na contra-mão da maré ocidental, pois a escravidão fora abolida na Ingleterra em 1808, mas atendia interesses sólidos da elite agrária local e nacional.
Portanto, o complexo do Valongo foi um dos fatores que agiram para que a alternativa de um estado monárquico constitucional independente fosse aquela adotada pela classe dirigente brasileira, fazendo a diferença com os países hispano-americanos e mesmo com os Estados Unidos, repúblicas desde o nascedouro.
Em 1843, o local teria sido remodelado e transformado no Cais da Imperatriz, com o intuito de receber a princesa Tereza Cristina das duas Sicílias, que desembarcava da Europa recém-casada com o imperador D. Pedro II. A área toda foi aterrada na primeira década do século XX, no âmbito das reformas urbanísticas promovidas pelo então prefeito Pereira Passos, dando lugar à praça Jornal do Comércio, localizada na atual avenida Barão de Tefé.
A aliança Monarquia-escravidão-ruralistas (senhores de terra) duraria até à tarde de 13 de maio de 1888.
No ano de 2011 a área foi escavada a pedido de pesquisadores e o Cais da Imperatriz e o Cais do Valongo foram encontrados em bom estado de preservação, um acima do outro com um desnível de cerca de 60 centímetros. A escavação fez parte do projeto Porto Maravilha para as Olimpíadas do Rio realizadas em 2016.
O Valongo recebeu o título de Patrimônio Histórico da Humanidade pela UNESCO em 09/07/2017 por ser a mais importante e contundente evidência material do desembarque dos africanos escravizados nas Américas e forte símbolo vivo dessa história.
Imagem: Aquarela de autoria de Thomas Ender, 1817, intitulada "Cercanias de Val-Longo". Em primeiro plano, a grande pedra da Prainha, derrubada poucos anos depois; e, mais adiante o pontal do Valongo. Acervo Kupferstichkabinett der Akademie der bildenden Künste, Viena.
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