RECORTES DA NOSSA HISTÓRIA: GUERRA DOS “BARBAROS”.


A conquista do interior da colônia se deu principalmente após a expulsão dos holandeses e o avanço da pecuária pelos sertões margeando os grandes rios brasileiros. Nesse processo ocorreu entre os anos de 1655 e 1720, a Guerra dos “Bárbaros” envolvendo os colonizadores e os povos nativos chamados de forma uníssona de “Tapuias” pelos Tupis, seus rivais do litoral, mas na verdade, tratam-se de uma miríade de povos diferentes e teve como palco uma área que correspondia em termos atuais a um território que inclui os sertões nordestinos, desde a Bahia até o Maranhão. A denominação Tapuia foi dada pelos cronistas da época, e perpetuada pela historiografia oficial, aos grupos indígenas com diversidade linguística e cultural que habitavam o interior, em distinção aos Tupi, que falavam a língua geral e se fixaram no litoral. Estudos atuais demonstram que esses povos pertenceram aos seguintes grupos culturais: os Jê, os Tarairiu, os Cariri e os grupos isolados e sem classificação. Entre eles podem ser citados os Sucurú, os Bultrim, os Ariu, os Pega, os Panati, os Corema, os Paiacu, os Janduí, os Tremembé, os Icó, os Carateú, os Carati, os Pajok, os Aponorijon, os Gurgueia, que lutaram ora contra ora a favor dos colonizadores de acordo com as estratégias que visavam à sua sobrevivência.
A guerra envolveu diversos povos indígenas, muitos deles inimigos tradicionais, por outro lado os colonizadores também entraram em conflito entre si pelas terras e mão de obra escrava nativa, atraindo os mais variados setores da sociedade colonial em formação, tais como: os sesmeiros, os moradores, os religiosos, os bandeirantes, os foreiros, os vaqueiros, os rendeiros, os capitães-mores, os mestres de campo.
O tema pouco aparece na historiografia, sendo praticamente desconhecido. A omissão dessa guerra nos livros didáticos e os raros livros de estudiosos especialistas sobre o episódio revelam o desprezo dado ao tema da resistência indígena e do violento processo de conquista lusitano no sertão nordestino e de que como a historiografia oficial oculta ou tenta justificar como civilizatória a dizimação de povos originários e autóctones.
Genericamente denominado de Guerra aos Bárbaros, esse conflito armado de caráter genocida também foi chamado de Guerra do Recôncavo (em menção ao recôncavo baiano, onde aconteceram as primeiras lutas armadas), Guerra do Açu (em referência à região do Açu, no Rio Grande do Norte, onde ocorreram os principais conflitos) e Confederação dos Cariris (por terem sido esses grupos indígenas um dos mais combatentes).
Essa terminologia “bárbaros” convinha ao discurso colonizador que propagava a catequese e a “civilização” dos povos indígenas nos moldes culturais do europeu ocidental. Eram descritos como povos selvagens, bestiais, infiéis, traiçoeiros, audaciosos, intrépidos, canibais, poligâmicos, enfim, “índios-problema”, pois não se deixavam evangelizar e civilizar. Eram, portanto, considerados os principais obstáculos à efetiva colonização. Essa imagem reforçou os argumentos do conquistador de impetrar uma “guerra justa” para extirpar os “maus” costumes nativos, satisfazendo tanto as necessidades de utilização de mão de obra pelos colonos quanto à garantia aos missionários do sucesso na imposição da catequese. O resultado foi a criação de dispositivos legais que legitimavam uma guerra de extermínio. É isso que nos confirma o documento datado de 1713, quando os povos nativos já estavam drasticamente reduzidos ou aprisionados e aldeados, no qual o governador de Pernambuco insiste ser “necessário continuar a guerra até extinguirem estes bárbaros de todo ou do menor ficarão reduzidos a tão pouco número que ainda que se queiram debelar o não possam fazer”.
Embora o resultado dessa guerra tenha sido catastrófica para os povos nativos da região, é importante destacar a sua tenaz resistência, que retardou o processo de conquista da terra pelos colonos nos sertões nordestinos por quase dois séculos. Os Tapuias desenvolveram uma forma de luta singular na história da resistência indígena no Brasil. Apesar de um passado caracterizado por conflitos internos entre as diversas tribos, esses povos conseguiram, através de uma série de alianças, alcançar um certo grau de coesão na sua luta contra o colonizador, que desejava remover os habitantes indígenas da região para povoá-la de gado (foi o pastoreio que permitiu a ocupação econômica, pelos colonizadores, em todo o interior do Nordeste) e representam um dos mais terríveis genocídios que a história oficial não conseguiu esconder.
Texto com transcrições do excelente livro: PIRES, Maria Idalina. Guerra dos bárbaros: resistência indígena e conflitos no Nordeste colonial. Recife: Fundarp/Cepe, 1990.
Imagem: “Guerrilhas”, aquarela, Rugendas, c. 1835.


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